quarta-feira, 28 de novembro de 2007

O que é notícia?

* Rubem Braga, sempre.

Os temas que aparecem com frequência nos meios de comunicação vão moldar as conversas e os pensamentos que circulam na sociedade, vão ditar os modismos, as piadas, as preocupações, as imaginações. E o que é mais preocupante é que esses temas (os mais recorrentes na grande mídia) são quase sempre os mesmos. E estão geralmente associados às fofocas pessoais, entretenimentos apelativos ou tragédias sociais.

Meu amigo lança fora, alegremente, o jornal que está lendo e diz:

- Chega! Houve um desastre de trem na França, um acidente de mina na Inglaterra, um surto de peste na Índia. Você acredita nisso que os jornais dizem? Será o mundo assim, uma bola confusa, onde acontecem unicamente desastres e desgraças? Não! Os jornais é que falsificam a imagem do mundo. Veja por exemplo aqui: em um subúrbio, um sapateiro matou a mulher que o traía. Eu não afirmo que isso seja mentira. Mas acontece que o jornal escolhe os fatos que noticia. O jornal quer fatos que sejam notícias, que tenham conteúdo jornalístico. Vejamos a história desse crime. "Durante os três primeiros anos o casal viveu imensamente feliz..." Você sabia disso? O jornal nunca publica uma nota assim:

"Anteontem, cerca de 21 horas, na rua Arlinda, no Méier, o sapateiro Augusto Ramos, de 28 anos, casado com a senhora Deolinda Brito Ramos de 23 anos de idade, aproveitou-se de um momento em que sua consorte erguia os braços para segurar uma lâmpada para abraça-la alegremente, dando-lhe beijos na garganta e na face, culminando com um beijo na orelha esquerda. Em vista disso, a senhora em questão, voltou-se para o seu marido, beijando-o longamente na boca e murmurando as seguintes palavras: "Meu amor", ao que ele retorquiu: "Deolinda". Na manhã seguinte, Augusto Ramos foi visto saindo de sua residência às 7,45 da manhã, isto é, dez minutos mais tarde do que o habitual, pois se demorou, a pedido de sua esposa, para consertar a gaiola de um canário-da-terra, de propriedade do casal."

A impressão que a gente tem, lendo os jornais - continuou meu amigo - é que "lar" é um local destinado principalmente à prática de "uxoricídio". E dos bares, nem se fala. Imagine isto:

"Ontem, cerca de 10 horas da noite, o indivíduo Ananias Fonseca, de 28 anos, pedreiro, residente à rua Chiquinha, sem número, no Encantado, entrou no bar "Flor Mineira", à rua Cruzeiro, 534, em companhia de seu colega Pedro Amancio de Araújo, residente no mesmo endereço. Ambos entregaram-se à fartas libações alcoólicas e já se dispunham a deixar o botequim, quando apareceu Joca de tal, de residência ignorada, antigo conhecido dos dois pedreiros, e que também estava visivelmente alcoolizado. Dirigindo-se aos dois amigos, Joca manifestou desejo de sentar-se à sua mesa, no que foi atendido. Passou então a pedir rodadas de conhaque, sendo servido pelo empregado do botequim, Joaquim Nunes. Depois de várias rodadas, Joca declarou que pagaria toda a despesa. Ananias e Pedro protestaram, alegando que eles já estavam na mesa antes. Joca, entretanto, insistiu seguindo-se uma disputa entre os três homens, que terminou com a intervenção do referido empregado, que aceitou a nota, que Joca lhe estendia. No momento em que trouxe o troco, o garçom recebeu uma boa gorjeta, pelo que ficou contentíssimo, o mesmo acontecendo aos três amigos, que se retiraram do bar alegremente, cantarolando sambas. Reina a maior paz no subúrbio do Encantado, e a noite foi bastante fresca, tendo dona Maria, sogra do comerciário Adalberto Ferreira, residente à rua Benedito, 14, senhora que sempre foi muito friorenta, chegado a puxar o cobertor, tendo depois sonhado que seu netinho lhe oferecia um pedaço de goiabada."

E meu amigo:

- Se um repórter redigir essas duas notas e levá-las a um secretário de redação será chamado de louco. Porque os jornais noticiam tudo, tudo, menos uma coisa tão banal de que ninguém se lembra: a vida...

Um comentário:

Anônimo disse...

ler todo o blog, muito bom